Não é novidade que a desigualdade de gênero e raça reflete na empregabilidade e na remuneração dentro do mercado de trabalho no Brasil. Apesar da legislação que proíbe a disparidade salarial entre indivíduos desempenhando a mesma função, a realidade é que tais disparidades persistem. Recentemente, o Governo Federal tomou medidas para enfrentar esse desafio ao publicar uma portaria que regulamenta a Lei nº 14.611/2023. Essa lei cria mecanismos para equalizar salários entre homens e mulheres ocupando o mesmo cargo em empresas com pelo menos 100 funcionários.
“Atualmente estamos vivendo um momento importante de mudanças culturais no que se refere ao modo de pensar do brasileiro, aos seus aspectos morais e de valores. Com isso temos conquistado muitos avanços no que tange às desigualdades de gênero e raça, e devemos sempre nos perguntar se essas desigualdades são permanentes ou se tivemos mudanças ao longo dos anos.
Natália Leão, Diretora de pesquisa e projetos na Gênero e Número.
Nesta artigo, exploramos um pouco mais a fundo esse cenário, observando a disparidade salarial entre quatro grupos: homens brancos, mulheres brancas, homens negros e mulheres negras (segundo critérios do IBGE, a categoria das pessoas negras incluem aquelas declaradas como pretas e pardas). Para isso, analisamos os dados do Cadastro Geral de Empregados e Desempregados (CAGED) e criamos recortes por esses grupos, estados e por diferentes atividades econômicas.
Antes de partir para análise, vale ressaltar que são muitos os conjuntos de dados que contém informações sobre remuneração e mercado de trabalho, como a Relação Anual de Informações Sociais (RAIS), a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD-C), o Censo Demográfico e outros. Optamos pelo CAGED principalmente por conta de sua periodicidade (mensal) e por se tratar de um registro administrativo obrigatório para todas empresas que contratam ou demitem funcionários com carteira assinada. Apesar de ser um conjunto muito rico para análises sobre o mercado de trabalho no Brasil, é importante lembrar que o CAGED não contempla informações de profissionais autônomos ou informais, categorias que representam uma parcela importante da população brasileira. Deixamos para você, databaser, explorar essas outras bases e enriquecer ainda mais esse importante debate. Todas elas já estão tratadas e disponíveis no datalake público da BD.
Ao analisarmos o salário médio por grupos, ficou evidente a vantagem que homens brancos mantêm em relação aos demais. Em 2023, o salário médio dos homens brancos foi de R$2.087, 25,6% maior do que o salário médio das mulheres negras, que foi de R$1.662. Uma forma de visualizar as diferenças é ver o salário médio de homens negros, mulheres negras e brancas enquanto porcentagem do salário médio de homens brancos, como você pode conferir no gráfico abaixo.
O salário médio de homens negros e mulheres brancas alternam na proximidade com o rendimento médio de homens brancos, mas no Centro-Oeste e Sul, os homens negros possuem rendimentos médios melhores. A tendência parece menos evidente no Norte nesse sentido. No Nordeste, Norte e Sul, o salário médio das mulheres negras chega a ultrapassar o patamar de 85% do rendimento de homens brancos em alguns meses. O Sudeste e o Centro-Oeste são similares na remuneração de mulheres negras, ambos abaixo de 80% na maioria dos meses (a média entre os anos das duas regiões foi de 78,7% e 79,3%, respectivamente).
Similarmente, o Sudeste e Centro-Oeste são as regiões mais desiguais quando consideramos o quanto o salário médio dos homens brancos é maior do que o das mulheres negras, sendo 24% e 27% maior em 2023, respectivamente. No Nordeste, este valor é 17% maior — ainda desigual, mas menos do que as outras regiões. E em termos do rendimento médio geral nas regiões, há variações importantes, mas não entre o Centro-Oeste e o Nordeste, por exemplo. Esta última é a região com menor salário mensal médio (R$1.615). No Centro-Oeste, que está na terceira posição, a remuneração média dos quatro grupos é de R$1.764 — no Sudeste e Sul esses valores são de R$1.946 e R$1.905; o norte tem remuneração média de R$1.695.
Com relação às UFs, o Mato Grosso foi o estado com maior diferença percentual entre o salário médio de homens brancos e mulheres negras em três dos quatro anos considerados aqui (2020, 2021 e 2023). Além disso, para este estado a diferença aumentou com o tempo. Se em 2020 os homens brancos possuíam salário médio 35% maior do que as mulheres negras, este valor aumentou para 35,9% em 2021, 37,6% em 2022 e para 38% em 2023. Ainda no Centro-Oeste, o Distrito Federal apresentou cifras superiores a um terço na diferença salarial nos dois primeiros anos; a partir de 2022 as diferenças diminuem.
Em 2022, o estado com a maior diferença foi o Amapá (44%). Este último também liderou as desigualdades de salário médio na sua região juntamente com Roraima e Tocantins. O caso do Amapá é curioso porque a desigualdade saltou de 27,5% para 34,7%, depois para os 44% mencionados e então caiu para 20% no último ano. Nesse período, o salário médio de homens brancos cresceu até atingir o patamar de R$2.034 em 2022, porém com queda para R$1.796 já em 2023. Em comparação o salário médio de homens negros, mulheres brancas e mulheres negras passou de R$1.523, R$1.752 e R$1.410 para R$1.611, R$1.708 e R$1.495, respectivamente. Em contrapartida, o Acre foi o estado com menor diferença entre 2020 e 2021 (com 8,9% e 12,6% de diferença salarial média) — a tendência foi de crescimento desde então.
No Nordeste, seis estados da região possuíam diferenças maiores de 20% em 2020, com a liderança de desigualdade sendo da Bahia, com 28,5% neste ano. O cenário foi similar em 2021, com a inclusão do Piauí e exclusão do Rio Grande do Norte entre os mais desiguais. Isso mudou, contudo, nos anos seguintes. Somente Bahia e Maranhão mantiveram diferenças maiores do que 20% neste período, mas também com tendência de queda. O Rio Grande do Norte e a Paraíba tiveram os menores diferenciais entre 2022 e 2023 (RN com 12% e PB com 11,8%).
No Sul e Sudeste nenhum dos estados ultrapassou a marca dos 30%. E à semelhança do Nordeste, a tendência foi de diminuição progressiva das diferenças salariais médias a partir de 2022. Os resultados para os estados vão de encontro com os resultados para as regiões de forma agregada.
A atividade econômica com maior desigualdade de remuneração entre homens brancos e mulheres negras é a de Atividades Financeiras, de Seguros e Serviços Relacionados, levando em consideração o quanto o percentual do salário médio do primeiro grupo é maior que o segundo. Esse foi o caso em todos os anos com exceção de 2022, em que a atividade de Informação e Comunicação apresentou maiores diferenças. Os valores variaram entre 66,7%, 63,4%, 55,5% e 47,6% — ou seja, apesar do declínio ao longo do tempo, as diferenças salariais começam muito altas. Maiores investigações são necessárias para entender tamanha discrepância salarial nessas atividades, e por que os valores têm declinado com o tempo.
A atividade econômica com menores desigualdades salariais foi a de Organismos Internacionais e Outras Instituições Extraterritoriais. Vale destacar que que em 2020 as mulheres negras receberam salários médios 37,7% maiores do que os homens brancos (similarmente, homens negros e mulheres brancas receberem cerca de 20% a mais que homens brancos nesta atividade). A partir de 2021, contudo, o quadro muda. O sinal das diferenças salariais se inverteu e as mulheres negras passaram a receber cerca de 3% a menos do que homens brancos. Esse valor chegou a ultrapassar 15% em 2023. O mesmo aconteceu para os outros grupos, em que os homens brancos passaram a receber cerca de 20 a 30% a mais do que homens negros. Até mesmo a comparação com as mulheres brancas mudou, e o sinal mudou a partir de 2023, em que os homens brancos passaram a receber cerca de 3% a mais, na média.
Esta atividade também foi a que teve o menor volume de movimentações registradas no Caged. Levando em consideração a atividade com maior volume, Comércio, Reparação de Veículos Automotores e Motocicletas, o salário médio das mulheres negras ainda não está em condições de igualdade, sendo cerca de 20% menor do que o salário médio de homens brancos — apesar da situação média de homens negros e mulheres brancas não ser tão melhor, sendp cerca de 10% ao longo dos anos. Contudo, a tendência ao longo do tempo para esta subseção é de declínio das desigualdades.
A atividade de Organismos Internacionais e Outras Instituições Extraterritoriais também é que possui os melhores salários médios de todas as subseções do Cnae. A atividade de Serviços Domésticos, por outro lado, é que a possui os salários médios mais baixos. Ela também conta com um volume de movimentações relativamente baixo, com cerca de 1.000 movimentações em 2023. Como esta atividade acaba concentrando maior contingente de trabalho informal (aproximadamente 4,4 milhões de pessoas em janeiro de 2023) e o Caged capta somente os trabalhos formais, acreditamos ser este o motivo. Então ao menos no cenário de trabalho formal, a diferença salarial entre os grupos persiste, no qual os homens brancos seguem com rendimentos médios melhores. Entre 2020 e 2023, eles receberam em torno de 5% a mais do que homens negros e 13% a mais do que mulheres brancas e negras. Não parece haver tendência de queda ou crescimento entre os anos.
Quando buscamos por possíveis tendências, vemos que pessoas brancas, especialmente homens, costumam se beneficiar mais quando a economia melhora, refletindo em ganhos salariais. No entanto, também são os primeiros a sentir perdas salariais quando a situação econômica piora, embora não o suficiente para se aproximar dos níveis de outros grupos. Por outro lado, pessoas negras, especialmente homens, têm enfrentado desafios para desfrutar dos ganhos em períodos econômicos positivos, mas, ao mesmo tempo, não experimentam tantas perdas durante períodos de desaceleração econômica. Isso ocorre em parte devido ao crescimento lento dos salários, que começaram em patamares muito baixos, geralmente abaixo da média salarial geral.
De acordo com Natália Leão, Diretora de pesquisa e projetos na Gênero e Número, “Quando olhamos para as discrepâncias salariais por gênero e raça, nossa tendência é inicialmente demarcar a permanência dessa desigualdade — que de fato existe. Contudo, ao analisarmos séries temporais, podemos notar que as mulheres, principalmente as brancas, tiveram enormes avanços tanto no montante salarial quanto ao acesso às ocupações que antes eram fechadas apenas aos homens.”
Sobre os aspectos que podem interferir nessas disparidades, Natália também aponta que a sociedade impõe padrões e características pré-estabelecidas do que seria o comportamento e atividades ideais para pessoas de determinado gênero ou raça. “ Ao adentrarmos no mercado de trabalho, podemos notar que muitos desses aspectos são ali replicados e ganham uma lógica própria, como a discriminação por parte do empregador, ao encaixar características pré-determinadas às pessoas de acordo com seu gênero ou raça/cor; a institucionalização dessa discriminação que faz com que se torne um padrão de comportamento dentro do mundo laboral já no processo de seleção de candidatos, encaixando cada perfil de vaga a características pré-estabelecidas a cada gênero e raça/cor.”
Você pode conferir o código completo da análise por aqui.
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