Prestes a completar quatro meses da tragédia causada pelas chuvas no Rio Grande do Sul, a análise dessa edição traz um pouco de uma discussão sobre sua magnitude e sua relação com o aquecimento global. Afinal, trata-se de uma das maiores tragédias climáticas já ocorridas no país, e não podemos esquecer dela facilmente.
Começando no dia 27 de abril, chuvas intensas atingiram o RS e as bacias dos rios Caí, Taquari, Jacuí, Pardo, Sinos e Gravataí, chegando também no Guaíba. Mais de 2,34 milhões de gaúchos foram direta ou indiretamente afetados e 473 municípios foram atingidos, quase 95 % do total do estado.
Focamos nossa análise na capital do estado, Porto Alegre, e utilizamos os dados da estação automática localizada no bairro Jardim Botânico, mantida pelo Instituto Nacional de Meteorologia (INMET). Estes dados, é claro, já estão tratados e disponíveis no datalake público da Base dos Dados.
Acesse os dados no INMET por aqui.
A estação foi instalada em 22 de setembro de 2000 e, desde então, tem coletado dados de pressão, temperatura e, entre outros, precipitação, nosso interesse. É possível perceber que, a partir do dia 27 de abril, o volume de chuvas ultrapassou toda a precipitação registrada para qualquer ano anterior, como é possível observar no gráfico abaixo.
A precipitação não só se manteve alta até a primeira semana de maio, mas por todo o resto do mês. Ainda no dia 23, maio já havia sido declarado o mês com maior quantidade de chuva na história de Porto Alegre.
Chuvas tão intensas e por tanto tempo foram o resultado de um alinhamento desagradável de fatores. Uma alta pressão na região central do Brasil, associada a uma onda de calor, impediu que uma frente fria vinda do sul pudesse avançar em direção ao norte. Além disso, durante a atuação do El Niño (ainda em atividade no primeiro semestre de 2024), a atmosfera tende a ficar mais quente e, portanto, ter maior capacidade de carregar vapor d’água, o que pode ter intensificado ainda mais as chuvas. De acordo com Karina Lima, doutoranda em Climatologia e divulgadora científica, alguns dos fatores que atuaram em conjunto foram o "El Niño intensificando corredor de umidade vindo da Amazônia, bloqueio atmosférico devido a uma massa de ar quente sobre o Brasil central fazendo com que toda a umidade ficasse presa sobre o Rio Grande do Sul e, claro, as mudanças climáticas antropogênicas tornando o evento extremo mais provável e intenso.”
Climatologistas determinam índices para facilitar a avaliação de eventos extremos e poder entender como eles estão se dando ao longo do tempo. Um desses índices determina a maior quantidade de precipitação em um período de cinco dias seguidos ao longo de um ano. Um valor muito alto em relação à média climatológica indicaria a presença de um evento extremo. Com os dados da estação automática de Porto Alegre fizemos esta análise abaixo e o resultado foi notável.
Com relação ao futuro do Rio Grande do Sul e a previsão de novos eventos climáticos extremos, Karina explica que "os modelos projetam aumento do total anual e da precipitação máxima de 5 dias sobre o estado, e não uma precipitação bem distribuída durante o ano. Teremos mais eventos extremos de chuva."
Embora tenhamos testemunhado uma mobilização surpreendente do governo e sociedade civíl no resgate, acolhimento e reconstrução no estado após a tragédia, Karina ressalta que é preciso se preparar para próximos eventos com soluções adequadas para esse novo cenário climático: "A ciência precisa ser levada a sério para a tomada de decisões e para guiar políticas públicas, sendo necessário entender que o mundo já mudou e a tendência é de piora enquanto o aquecimento global antropogênico não for estabilizado. Enquanto não se investir em adaptação inteligente, com soluções compatíveis com esse novo cenário, continuaremos na lógica da remediação — que é prejudicial à segurança e qualidade de vida da população, além de economicamente inviável."
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Já tivemos uma contribuição especial na análise desta edição e, para completar o assunto, tivemos o prazer de aprofundar um pouco a conversa sobre mudanças climáticas com a Karina Lima. Falamos sobre os desafios na análise de dados meteorológicos, possíveis relações do aquecimento global com os eventos extremos no RS e mais.
Karina é doutoranda em Geografia na área de Climatologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), mestre em Geografia com ênfase em análise ambiental e bacharel em Geografia pela mesma instituição e atua nas áreas de Climatologia e Meteorologia com pesquisas sobre tempestades, eventos extremos, desastres e mudanças climáticas. Ela também integra grupos de pesquisa sobre os impactos de eventos extremos na saúde humana e o projeto de extensão "O Que Você Faria Se Soubesse o Que Eu Sei?", que comunica sobre a crise climática e combate o negacionismo.
Atualmente você pesquisa tempestades, eventos extremos e desastres, além de fazer divulgação científica sobre mudanças climáticas. Poderia nos contar um pouco sobre o papel dos dados meteorológicos na compreensão das mudanças climáticas e seus impactos?
Tempo meteorológico é o estado das condições atmosféricas em um determinado momento e local, enquanto o clima descreve as condições típicas — sendo assim necessário grande quantidade de dados meteorológicos para saber como o clima costuma se comportar em uma região. Logo, o estudo das mudanças climáticas passa pela análise de muitos dados meteorológicos para que consigamos estabelecer o que mudou, as anomalias em relação a uma média do passado.
Quais são os principais desafios que você enfrenta ou já enfrentou na coleta e análise de dados para sua pesquisa? Os dados disponíveis hoje são suficientes e possuem a qualidade necessária para ter precisão nas pesquisas sobre mudanças climáticas?
Acho que depende muito da área de estudo mas, de forma geral, no Brasil os bancos de dados relacionados a clima são desconectados e, muitas vezes, insuficientes. O pesquisador brasileiro tem que ser criativo e, com bastante frequência, utilizar um tempo maior que o normal para conseguir fazer uma pesquisa.
Como identificar se há interferência do aquecimento global (e das mudanças climáticas já em curso) nos fenômenos meteorológicos que vivenciamos? E, neste caso, podemos relacionar essa ocorrência ao aquecimento provocado pelo excesso de CO2 injetado na atmosfera pela atividade humana?
No nosso cenário atual, com o sistema mais quente devido às nossas emissões, portanto, com aquecimento da atmosfera, oceano e superfície terrestre, é muito difícil que fenômenos não sofram algum grau de influência. E para mensurar isso existem estudos de atribuição, que analisam o quanto as mudanças climáticas antropogênicas tornaram um determinado evento mais provável e/ou intenso. No caso do desastre de abril-maio/2023 no RS, um estudo de atribuição analisou duas janelas de eventos compreendendo todo o período com grande acumulado de chuva sobre o estado e concluiu que a influência humana tornou ambos os eventos extremos mais de 2x mais prováveis e entre 6%-9% mais intensos. Isso sem contar a contribuição humana sobre outros aspectos, como na redução de investimentos em prevenção, sistema de alertas falho, legislação ambiental não respeitada e falta de manutenção do sistema de proteção contra inundações em Porto Alegre.
Poderia nos contar um pouco sobre a sua pesquisa em climatologia, especialmente no que diz respeito a tempestades e eventos extremos? Além disso, como você vê a importância da divulgação científica na conscientização pública sobre as mudanças climáticas e seus impactos?
Minha pesquisa é sobre eventos extremos de chuva e desastres. Acredito que seja uma área de grande importância porque precisamos de mais estudos para termos uma melhor previsibilidade para mesoescala, especialmente em um mundo mais quente e com modificação de padrões.
Assim como a pesquisa, a divulgação científica é essencial para que o conhecimento acadêmico seja democratizado e chegue a todos porque, a partir do momento que as pessoas têm acesso à informação de qualidade, elas tomam melhores decisões e transformam o mundo. Logo, vejo a divulgação científica sobre a crise climática como uma questão moral, pois é essencial que as pessoas entendam o que está acontecendo e saibam que só com grande adesão popular conseguiremos superar essa crise e garantir habitabilidade para nós, para as futuras gerações e para todas as outras espécies com as quais dividimos nosso lar comum, o planeta Terra.
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