Para entender melhor os efeitos da possível extinção da escala 6x1, falamos com a Marilene Teixeira, economista e autora da nota técnica "O Brasil está pronto para trabalhar menos". Na conversa, falamos sobre a falta de uma distribuição igualitária da carga de trabalho, sobre as desigualdades de gênero e raça no mercado de trabalho e muito mais.
Marilene possui graduação em Ciências Econômicas, mestrado em Economia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (1999), doutorado em Ciência Econômica pela Universidade Estadual de Campinas e Pós-doutorado no Programa de Desenvolvimento econômico e social do Instituto de Economia da Universidade Estadual de Campinas.
Um dos argumentos contrários à PEC protocolada pela Érika Hilton (PSOL), que propõe a extinção da escala 6x1 sem perda salarial, é o dos seus potenciais efeitos negativos na economia brasileira. Estima-se que mais de 36 milhões de trabalhadores formais estejam atualmente neste tipo de escala, o que representa mais de 60% do total de trabalhadores no país. Entre os efeitos negativos, estariam a perda de renda e a perda de produtividade da economia. Como você avalia essas questões? O quanto a geração de renda e produtividade pode ser associada às horas de trabalho vigentes?
A associação entre geração de renda, produtividade e a quantidade de horas trabalhadas é, na verdade, mais complexa do que muitas vezes se presume. O argumento de que a extinção da escala 6x1 poderia gerar perda de renda e produtividade parte de uma visão que equipara longas jornadas de trabalho à eficiência econômica, o que não se sustenta plenamente nem do ponto de vista empírico, nem do ponto de vista teórico.
Diversos estudos internacionais demonstram que jornadas excessivas tendem a gerar efeitos contrários: aumento do cansaço, maior incidência de doenças ocupacionais, redução da produtividade marginal do trabalho e, inclusive, mais acidentes de trabalho. Países que adotam jornadas médias menores do que o Brasil — como Alemanha, França e os países nórdicos — apresentam produtividade significativamente maior, com melhores indicadores de bem-estar social e desenvolvimento econômico.
Além disso, é importante observar que a geração de renda não depende exclusivamente da quantidade de horas trabalhadas, mas sobretudo da qualidade do trabalho, do grau de inovação tecnológica, dos investimentos em qualificação e da organização da produção. O modelo de compressão dos custos via intensificação das jornadas é típico de economias de baixa produtividade e de alta exploração da força de trabalho, como ainda é, infelizmente, o caso de boa parte da economia brasileira.
Portanto, afirmar que reduzir jornadas ou extinguir a escala 6x1 levaria automaticamente à perda de renda ou produtividade desconsidera experiências internacionais e ignora que o modelo de desenvolvimento não deve se sustentar na superexploração dos trabalhadores. Ao contrário, a redistribuição do tempo de trabalho pode gerar efeitos positivos, como aumento do emprego, melhoria na qualidade de vida, redução de adoecimentos e, consequentemente, ganhos de produtividade sustentáveis no médio e longo prazo.
Por fim, é fundamental destacar que o debate sobre jornada não pode ser reduzido a uma questão técnica ou econômica. Trata-se, sobretudo, de um debate sobre o modelo de sociedade que queremos construir: uma sociedade que prioriza o lucro a qualquer custo ou uma sociedade que valoriza a vida, o bem-estar e a dignidade dos trabalhadores.
Na nota técnica “O Brasil está pronto para trabalhar menos”, de sua autoria, um ponto muito importante levantado é da sobrejornada de trabalho, com mais horas trabalhadas do que o permitido por lei. Como você vê a questão da informalidade neste contexto? Diminuir a jornada de trabalho permitida por lei não teria o potencial de aumentar o número de trabalhadores em situação de informalidade? Se sim, quais medidas poderiam ser tomadas para garantir que não haja este aumento?
A preocupação de que a redução da jornada legal possa gerar aumento da informalidade é legítima, especialmente em um país como o Brasil, que historicamente convive com elevados índices de trabalho informal. No entanto, é importante entender que a informalidade não é causada, prioritariamente, pela regulação trabalhista — como o limite de jornada —, mas sim por fatores estruturais, como a baixa capacidade de geração de empregos de qualidade, a elevada desigualdade social, a falta de fiscalização e a própria dinâmica de precarização promovida por setores empresariais. A rigor, o que a experiência internacional e a literatura especializada demonstram é que não há relação direta entre proteção trabalhista e aumento da informalidade. Pelo contrário, países que combinaram redução de jornada com políticas robustas de formalização — como fiscalização eficiente, desonerações direcionadas, fortalecimento da negociação coletiva e acesso facilitado à seguridade social — conseguiram não apenas reduzir o desemprego, mas também a informalidade. Portanto, a redução da jornada não deve ser vista de forma isolada. Ela precisa estar articulada a um conjunto de medidas, como:
Fortalecimento da inspeção do trabalho, com aumento do número de auditores fiscais e uso de tecnologias para monitoramento das relações de trabalho;
Políticas de incentivo à formalização, sobretudo para micro e pequenas empresas, que muitas vezes recorrem à informalidade por dificuldade de acesso ao crédito, à informação ou por excesso de burocracia;
Revisão do modelo tributário sobre a folha, de modo a desonerar setores intensivos em trabalho, sem abrir mão do financiamento da seguridade social;
Valorização da negociação coletiva, permitindo que trabalhadores e empregadores construam soluções setoriais para implementação da nova jornada, de forma segura e pactuada;
E, fundamentalmente, combate à precarização, especialmente dos modelos que hoje burlam a legislação trabalhista, como a pejotização, o falso trabalho autônomo e as plataformas digitais.
Portanto, a redução da jornada, longe de ser um vetor de informalidade, pode ser uma oportunidade para requalificar o mercado de trabalho brasileiro, distribuindo melhor o tempo de trabalho, gerando empregos e promovendo inclusão social — desde que acompanhada de uma agenda consistente de fortalecimento dos direitos, da fiscalização e das políticas públicas.
Sabemos que não há uma distribuição igualitária da carga de trabalho ao olharmos para diferentes recortes de gênero e raça/cor dentre a sociedade brasileira. Hoje, com a maioria da população trabalhando em regimes 6x1 (e até considerando 5x2), desigualdades de gênero e raça podem ser exacerbadas, como se dá este processo? Qual seria o impacto da redução da jornada de trabalho na atenuação das desigualdades de gênero e raça?
De fato, as desigualdades de gênero e raça no Brasil não se expressam apenas nas diferenças salariais, mas também na própria distribuição do tempo de trabalho — tanto no trabalho remunerado quanto no não remunerado. Mulheres, especialmente mulheres negras, acumulam jornadas muito mais longas quando somamos o trabalho pago e o trabalho doméstico e de cuidados, que, historicamente, recai de forma desproporcional sobre elas.
Quando olhamos para modelos de jornadas extensas, como o 6x1 ou mesmo o 5x2, esse quadro se agrava. Isso porque as longas jornadas no trabalho remunerado não suspendem as obrigações com o cuidado, que seguem sendo majoritariamente responsabilidade das mulheres — cuidar de filhos, idosos, da casa, da alimentação, entre outras tarefas. Essa dupla, e muitas vezes tripla, jornada leva a maior sobrecarga física e mental, menor acesso ao tempo livre, menos possibilidades de qualificação, lazer, participação política e até de autocuidado.
Além disso, no mercado de trabalho brasileiro, as mulheres negras estão concentradas nos postos mais precarizados, nos setores de serviços, comércio, cuidados e trabalho doméstico, onde a jornada extensa se soma a baixos salários e alta rotatividade. Esse arranjo perpetua ciclos de pobreza, exclusão social e desigualdades intergeracionais.
Portanto, a redução da jornada de trabalho, sem redução salarial, teria impacto direto na atenuação dessas desigualdades. Ao redistribuir o tempo social de trabalho, cria-se a possibilidade de que mulheres, sobretudo mulheres negras, possam reduzir sua sobrecarga, acessar mais espaços de formação, lazer, participação comunitária e política, além de favorecer uma maior corresponsabilidade dos homens nas tarefas domésticas e de cuidado.
Essa medida, por si só, não resolve a desigualdade estrutural, mas é uma ferramenta fundamental para enfrentá-la. Ela precisa estar articulada a políticas de redistribuição, como ampliação da rede pública de cuidados (creches, serviços para idosos, lavanderias públicas), combate à discriminação no mercado de trabalho e promoção da equidade racial e de gênero nas empresas e instituições.
Portanto, discutir a jornada de trabalho também é discutir justiça social, equidade de gênero e reparação racial no Brasil.
Há exemplos de países ou experiências no Brasil (empresas ou iniciativas) que abandonaram escalas semelhantes à 6x1? Que lições poderiam ser consideradas na análise de seus impactos no emprego e na vida dos trabalhadores?
Sim, há experiências concretas, tanto no exterior quanto no Brasil, que mostram que é possível superar modelos de jornadas extenuantes como o 6x1, com impactos positivos tanto para a vida dos trabalhadores quanto para as próprias empresas e economias.
No cenário internacional, diversos países já adotam jornadas semanais mais curtas do que as praticadas no Brasil. Na França, a jornada semanal é de 35 horas desde o início dos anos 2000. Mais recentemente, experiências com a semana de quatro dias úteis foram testadas em países como Reino Unido, Islândia, Bélgica, Espanha e Nova Zelândia, entre outros. Avaliações dessas experiências indicaram aumento de produtividade, redução do adoecimento, maior equilíbrio entre vida pessoal e trabalho e, em alguns casos, até redução do turnover (rotatividade) nas empresas.
No Brasil, embora a legislação ainda permita modelos como o 6x1, há empresas que vêm experimentando modelos de jornada reduzida, seja com a adoção de quatro dias de trabalho na semana, seja com jornadas diárias mais curtas. Alguns setores de tecnologia, inovação, comunicação e até da indústria têm adotado essas práticas como estratégia para melhorar o bem-estar, atrair e reter talentos e, inclusive, aumentar a produtividade.
A principal lição dessas experiências é que a redução da jornada não gera, necessariamente, redução da produtividade ou dos resultados econômicos. Ao contrário, quando bem planejada e associada à reorganização dos processos de trabalho, à adoção de tecnologias e ao investimento nas condições de trabalho, ela tende a gerar ambientes mais saudáveis, inovadores e produtivos. Além disso, há impactos significativos na vida dos trabalhadores: mais tempo para o cuidado, para a família, para a educação, para o lazer e para a participação social. Isso não apenas melhora o bem-estar individual, mas também tem efeitos positivos na economia local, já que trabalhadores com mais tempo livre consomem mais cultura, serviços e atividades comunitárias.
Portanto, as experiências já existentes mostram que superar modelos como o 6x1 não é apenas possível — é desejável e necessário para construirmos um mercado de trabalho mais justo, saudável e sustentável.
As fontes de registro administrativo sobre vínculos empregatícios formais ou de movimentação de vínculos, como a RAIS e o CAGED, não permitem identificar os tipos de jornada existentes. Há fontes de dados além da PNADc capazes de mensurar esta informação? Por fim, quais são os desafios técnicos mais encontrados na hora de encontrar e tratar esses dados?
De fato, as bases administrativas como RAIS e CAGED, apesar de fundamentais para medir estoque e fluxo de vínculos formais, não possuem informações detalhadas sobre o tipo de jornada, como escalas (6x1, 5x2, 12x36, etc.) ou a distribuição dos dias de trabalho na semana. Elas informam apenas a quantidade de horas contratadas semanalmente, sem detalhar como essas horas são distribuídas. Além da PNAD Contínua (PNADc), que é hoje a principal fonte para informações sobre jornada efetivamente realizada, há outras bases que podem, de forma parcial, ajudar a mensurar aspectos da jornada de trabalho. Entre elas:
Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF): embora não tenha como foco central o mercado de trabalho, traz informações sobre uso do tempo, que permitem observar como o tempo é distribuído entre trabalho pago, trabalho não pago e outras atividades.
Pesquisa Nacional de Saúde (PNS): inclui alguns módulos sobre trabalho, onde se pergunta sobre jornada extensa e trabalho noturno, associado à saúde dos trabalhadores.
Pesquisa de Uso do Tempo (em fase de desenvolvimento pelo IBGE): quando implementada de forma permanente, poderá oferecer uma visão mais precisa sobre a organização do tempo de trabalho e dos cuidados, especialmente relevante para estudos de gênero.
Pesquisas setoriais ou privadas, como as realizadas por sindicatos, associações empresariais ou consultorias de RH, que, embora menos abrangentes, podem capturar informações específicas sobre jornadas e escalas de trabalho em determinados setores.
No campo dos registros administrativos, um avanço potencial seria o aprimoramento do eSocial, que, em tese, poderia captar informações mais detalhadas sobre a jornada pactuada, incluindo o tipo de escala. Contudo, até o momento, o nível de detalhamento disponível publicamente ainda não permite essa mensuração de forma ampla e sistemática.
No campo dos registros administrativos, um avanço potencial seria o aprimoramento do eSocial, que, em tese, poderia captar informações mais detalhadas sobre a jornada pactuada, incluindo o tipo de escala. Contudo, até o momento, o nível de detalhamento disponível publicamente ainda não permite essa mensuração de forma ampla e sistemática.
Os desafios técnicos principais são:
Inexistência de variável direta sobre escala de trabalho nas principais bases administrativas.
Subdeclaração ou inconsistências nas informações de horas trabalhadas na PNADc, sobretudo em ocupações informais ou autônomas, onde os próprios respondentes precisam estimar sua jornada.
Incompatibilidades entre fontes: bases como PNADc, RAIS e CAGED são construídas com objetivos e metodologias diferentes, o que dificulta cruzamentos diretos ou consolidação de informações.
Falta de séries históricas consistentes sobre tipos de jornada, o que dificulta análises de tendência e simulações de impacto de mudanças legislativas.
Baixa disponibilidade de microdados do eSocial, que poderia, se aberto e bem estruturado, revolucionar a análise sobre jornadas e condições de trabalho no Brasil.
Portanto, há uma lacuna estatística importante no país quando se trata de mensurar de forma precisa os tipos de jornada, especialmente as escalas de trabalho.
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